Historicamente, a filosofia se situa entre o laboratório e o templo. Enquanto o cientista é o escravo dos fatos e o sacerdote é o servo da fé, o filósofo é filho da liberdade de pensamento e sua atividade intelectual não encontra limites. A função essencial da filosofia, mais do que oferecer respostas, é formular perguntas. Ela não se rende, de antemão, nem ao experimento nem ao milagre e submete um e outro ao escrutínio da razão — desconfiando da própria racionalidade. Isso faz com que a dúvida seja o alimento essencial do filósofo, não para negar a verdade, mas para buscá-la em sua pureza, mesmo sabendo que, no mais das vezes, essa é uma missão inglória. Buscar a verdade é tarefa de Sísifo, o personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma pedra até o topo de um monte apenas para vê-la rolar outra vez ao chão, tendo de repetir para sempre o esforço inútil.
Mas, em sua luta vã com a verdade, o filósofo antigo iluminava o mundo. Desde que os gregos emanciparam a filosofia da religião, ousando questionar os deuses, o filósofo libertou ao máximo a força criativa do homem, contribuindo para o advento da ciência e a consolidação das instituições políticas. Basta lembrar que, entre 343-342 a.C., Aristóteles foi convidado por Felipe da Macedônia para ser o preceptor de Alexandre, o Grande, então com 13 anos de idade. “Aristóteles, desejando renovar suas antigas relações com a corte macedônica e atribuindo grande importância à educação de futuros soberanos, como podemos ver na ‘Política’, aceita o convite”, conta o filósofo escocês William David Ross (1877-1971) em sua obra sobre Aristóteles, publicada em 1923.
Segundo W. D. Ross, pouco se sabe sobre a educação que Aristóteles ministrava a seu pupilo, mas acredita-se que provavelmente tratava de Homero e dos trágicos, cujo estudo constituía o fundamento da educação grega. Além disso, Aristóteles compôs para Alexandre uma obra sobre a monarquia e outra sobre as colônias, temas de especial interesse para o futuro imperador. Mas, com o avanço da ciência, o conhecimento se tornou cada vez mais especializado e o filosofo perdeu esse lugar social de codificador do saber. Cada vez mais, a filosofia tende a se ver como uma espécie de juízo sobre a própria capacidade do conhecimento humano, tendência que ganharia força com as decisivas contribuições de David Hume (1711-1776) a esse ramo da filosofia.
Segundo W. D. Ross, pouco se sabe sobre a educação que Aristóteles ministrava a seu pupilo, mas acredita-se que provavelmente tratava de Homero e dos trágicos, cujo estudo constituía o fundamento da educação grega. Além disso, Aristóteles compôs para Alexandre uma obra sobre a monarquia e outra sobre as colônias, temas de especial interesse para o futuro imperador. Mas, com o avanço da ciência, o conhecimento se tornou cada vez mais especializado e o filosofo perdeu esse lugar social de codificador do saber. Cada vez mais, a filosofia tende a se ver como uma espécie de juízo sobre a própria capacidade do conhecimento humano, tendência que ganharia força com as decisivas contribuições de David Hume (1711-1776) a esse ramo da filosofia.
Uma cultura de comentadores
Há centenas, senão milhares de definições de filosofia. Elas são quase tão numerosas quanto os pensadores ao longo dos séculos, pois cada filósofo tende a definir a filosofia à sua imagem e semelhança. Em seu monumental “Diccionario de Filosofia”, o filósofo espanhol José Ferrater Mora (1912-1991), citando Josef Pieper, observa que, “enquanto perguntar ‘Que é a física?’ não é formular uma pergunta pertencente à ciência física, senão uma pergunta prévia, perguntar ‘Que é a filosofia?’ é formular uma pergunta filosófica — uma pergunta eminentemente filosófica”. Dessa forma, conclui Ferrater Mora, “cada sistema filosófico pode valer como uma resposta à pergunta acerca do que é a filosofia e também acerca do que a atividade filosófica representa para a vida humana”.
Todavia, como sustenta o filósofo italiano Nicola Abbagnano (1901-1990), também autor de um “Dicionário de Filosofia”, a despeito da disparidade de significações de “filosofia”, é possível reconhecer nelas algumas constantes, entre as quais, segundo ele, “a que mais se presta a relacionar e articular os diferentes significados desse termo é a definição contida no ‘Eutidemo’ de Platão: filosofia é o uso do saber em proveito do homem”.
E assim chegamos a Olavo de Carvalho — o homem que ressuscitou a filosofia no Brasil. Sim, talvez sem exagero, pode-se atribuir a ele esse feito — o de repor a filosofia no seu curso natural preconizado por Platão, isto é, como “uso do saber em proveito do homem”. Antes de Olavo de Carvalho, a filosofia brasileira estava confinada às universidades, transformada em atividade eminentemente historiográfica, como denunciou o filósofo equatoriano, radicado em Goiás, Gonçalo Armijos Palácios no delicioso e antológico “De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego, Estar Morto ou Ser Gênio”, opúsculo de 74 páginas originalmente publicado pela Universidade Federal de Goiás em 1997.
“Ainda não há no Brasil — lamentavelmente — uma cultura de filósofos e sim uma cultura de comentadores”, dizia taxativamente Gonçalo Palácios na primeira edição de seu livro, que teve edições revisadas posteriormente. Além de ser declaradamente de esquerda, o que o põe quase a salvo da patrulha politicamente correta, Gonçalo Palácios dispõe de inegável autoridade para criticar os problemas da academia: tem dois doutorados em filosofia, um no Equador e outro nos Estados Unidos, e é professor titular da Universidade Federal de Goiás desde 1992, ocupando vários cargos de direção e pesquisa na instituição. Ninguém pode negar que ele conhece a academia por dentro.
Isso torna insuspeita sua contundente avaliação sobre o ensino de filosofia no País. No opúsculo citado, Gonçalo Palácios sustenta: “A academia não produziu uma cultura filosófica brasileira, mas uma subcultura dependente, quase que absolutamente, do que se faz em culturas estrangeiras (às custas do dinheiro público, permita-me dizer)”. E reitera: “Não me passa pela cabeça dizer que se deve fazer uma filosofia ‘brasileira’. Só exijo que se faça ‘qualquer’ filosofia, mas que se faça, se produza, filosofia ‘no’ Brasil". É o que Olavo de Carvalho se propôs a fazer e fez — talvez, por isso, seja tratado como réprobo nas universidades brasileiras.
Dedo em riste na cara do leitor
Ao contrário dos filósofos acadêmicos, que se limitam a “fazer leitura” e “trabalhar conceitos”, geralmente de um só autor, Olavo de Carvalho volta sua mente para problemas reais e tenta solucioná-los à luz de uma inegável erudição filosófica, sem medo de ser acusado de ecletismo. Paulista de Campinas, onde nasceu em 1947, é autor de uma vasta obra filosófica, que inclui “O Jardim das Aflições”, talvez sua obra-prima, publicado já em forma de livro e não como coletânea de artigos esparsos. O livro, que reflete sobre o surgimento do Império mundial, nasceu como uma espécie de tréplica ampliada de uma palestra sobre Epicuro proferida no Masp pelo filósofo José Américo Motta Pessanha (1932-1993), idealizador da Coleção “Os Pensadores” da Editora Abril.
É ainda autor, entre outras obras, da “Coleção História Essencial da Filosofia”, publicada pela Editora É Realizações em 32 volumes, acompanhados de DVD com palestras do autor com aproximadamente 120 minutos cada uma. Mas, para o bem ou para o mal, o Olavo de Carvalho mais conhecido é o dos polêmicos artigos de combate, reunidos primeiramente no livro “O Imbecil Coletivo”, que deu fama ao autor quando publicado em 1996, seguido de um segundo volume.
Escrevendo com extrema graça, ironizando os adversários e rindo de si mesmo, Olavo de Carvalho se firmou como um polemista imbatível na década de 90. Houve um momento em que escrevia regularmente nos jornais “O Globo”, “Zero Hora” e “Jornal da Tarde”, colaborava com a “Folha de S. Paulo” e publicava nas revistas “Bravo” e “Primeira Leitura”. Atualmente, reside nos Estados Unidos e colabora com o “Diário do Comércio”, da Associação Comercial de São Paulo.
Foi desse manancial de artigos que saiu “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota” (Editora Record, 2013, 616 páginas), o mais novo livro de Olavo de Carvalho, que reúne 193 artigos do filósofo publicados entre 1997 e 2013, tratando dos mais variados temas. Ao contrário de “O Imbecil Coletivo”, que remete a uma entidade na terceira pessoa, o novo livro é um dedo em riste na cara do leitor chamando-o, sem meios-termos, de “idiota”. Se tivesse sido organizado pelo próprio autor, poderia ser considerado até deselegante. Mas a organização da obra é do jornalista, tradutor e articulista Felipe de Moura Brasil, que decidiu criar, à sua maneira, uma espécie de enciclopédia “Olavo de Carvalho”. Colaborador do “Mídia Sem Máscara” e autor do bem-humorado “Blog do Pim”, Felipe Moura Brasil escreve com graça e estilo.
Tão importante quanto se ter num só livro dezenas de artigos antológicos de Olavo de Carvalho é saber que essa coletânea foi elaborada por um jovem de vinte e poucos anos, dono de uma precoce maturidade intelectual. Como o próprio Felipe Moura Brasil explica na introdução do livro, “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota” é mais do que uma simples compilação de artigos; é sim, “uma compilação de temas essenciais — todos eles renegados à obscuridade no país —, sobre os quais os artigos vêm lançar luz, importando para a seleção menos a data e o veículo em que foram publicados do que o potencial de cada um em iluminar esses temas”. Felipe Moura Brasil diz que a seleção de textos é resultado de seus estudos da obra de Olavo de Carvalho e conta ter priorizado os textos mais sintéticos.
O peso da vanguarda revolucionária
Os artigos foram agrupados por temas, começando pelos que dizem respeito à formação do indivíduo, como “Juventude”, “Conhecimento” e “Vocação” e prosseguindo com aqueles que tratam de sua participação na sociedade, como “Democracia”, “Socialismo” e “Militância”. Cada tema engloba três ou mais artigos, como “Revolução”, com oito subtemas, cada um com vários artigos. Um dos temas forma um verdadeiro capítulo do livro, que o organizador intitulou “Intelligentzia (“Ou Pode Chamar de Máfia”). É nesse tema que se enfeixa o artigo “Abaixo o povo brasileiro”, publicado em 24 de agosto de 2009 no “Diário do Comércio”, em que Olavo de Carvalho sustenta: “Nunca o abismo entre a elite falante e a realidade da vida popular foi tão profundo, tão vasto, tão intransponível. Tudo o que o povo ama, os bem-pensantes odeiam; tudo o que ele venera, eles desprezam; tudo o que ele respeita, eles reduzem a objeto de chacota, quando não de denúncia indignada, como se estivessem falando de um risco de saúde pública, de uma ameaça iminente à ordem constitucional, de uma epidemia de crimes e horrores jamais vistos”.
Essa afirmação do filósofo foi motivada por uma pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco, mostrando que 81% dos jovens universitários discordavam da liberação da maconha e 76% eram contra o aborto, numa prova inconteste de que o povo brasileiro — como qualquer povo mentalmente saudável — é conservador. Mas, como Olavo de Carvalho insiste em denunciar em dezenas de artigos, esse caráter conservador do povo — que abrange até os jovens universitários — não tem qualquer representação política, pois o PSDB é o máximo de “direitismo” que a esquerda dominante admite.
Escreve Olavo de Carvalho no artigo citado: “Quando uma vanguarda revolucionária professa defender os interesses econômicos do povo mas, ao mesmo tempo, despreza a sua religião, a sua moral e as suas tradições familiares, é claro que não quer fazer o bem a esse povo, mas apenas usar aqueles interesses como chamariz para lhe impor valores que não são os dele, firmemente decidida a atirá-lo à lata de lixo se ele não concordar em remoldar-se à imagem e semelhança de seus novos mentores e patrões”.
O filósofo alerta: “É precisamente isto o que está acontecendo. Jogam ao povo as migalhas do Bolsa-Família, mas se, em troca dessa miséria, ele não passa a renegar tudo o que ama e a amar tudo o que odeia, se não consente em tornar-se abortista, gayzista, quotista racial, castrochavista, pró-terrorista, defensor das drogas e amante de bandidos, eles o marginalizam, excluem-no da vida pública, e ainda se acreditam merecedores da sua gratidão porque lhe concedem de quatro em quatro anos, democraticamente, generosamente, o direito de votar em partidos que representam o contrário de tudo aquilo em que ele crê”.
Filósofo é pai da nova direita
Em 2014, por exemplo, essa história vai se repetir. Pesquisa Datafolha, publicada na segunda-feira, 14, mostra que a quantidade de eleitores identificados com valores de direita é bem maior do que de esquerda. Enquanto a direita reúne 49% da população, a esquerda representa apenas 30% — apesar de todo o bombardeio ideológico esquerdista nas universidades, imprensa, cinema, música, telenovelas etc. Mas, como adverte a própria reportagem da “Folha de S. Paulo” sobre a pesquisa, isso produz pouco impacto nos índices de intenção de voto para presidente no próximo ano. A presidente Dilma Rousseff lidera nos três espectros ideológicos, alcançando de 49% a 56% das intenções de voto entre os eleitores de esquerda; de 40% a 42% entre os de centro-esquerda; de 41% a 43% entre os de centro; de 38% a 41% entre os de centro-direita; e de 36% a 39% entre os de direita.
O novo livro de Olavo de Carvalho — considerado um filósofo de direita, em consonância com essa maioria pesquisada pelo Datafolha — entrou na lista dos dez mais vendidos. É uma prova de que sua luta quase solitária na década de 90, que por um momento parecia inglória, rendeu frutos. Olavo de Carvalho é uma espécie de pai da nova direita intelectual brasileira, que já dispõe de alguns expoentes na imprensa nacional, como o jornalista Reinaldo Azevedo, o economista Rodrigo Constantino, o filósofo Luiz Felipe Pondé, o historiador Marco Antonio Villa e o filósofo Denis Lerrer Rosenfield. É claro que essa classificação não é rigorosa e, num país politicamente normal, é possível que todos os articulistas citados, inclusive Constantino, pudessem ser qualificados no centro do espectro ideológico. Mas no país em que até o esquerdista José Serra é tachado de liberal, alguém precisa fazer o papel da direita, mesmo sabendo que os rótulos são reducionistas.
Foi Olavo de Carvalho quem abriu caminho para todos esses articulistas. O sucesso de livros como “O Imbecil Coletivo” mostrou aos editores de jornal que havia espaço para um pensamento liberal e conservador, de caráter mais transcendental, diferente do liberalismo de Paulo Francis, materialista até as vísceras e, por isso mesmo, mais próximo da esquerda do que aparentava. Mas o fato de já existirem meia dúzia de liberais e conservadores escrevendo regularmente na imprensa não significa que a hegemonia da esquerda está prestes a ser quebrada. O advento dessa nova direita é sobejamente compensado pela ideologização a plenos pulmões da OAB e do Judiciário, que flertam cada vez mais com o fascismo de esquerda, travestido de politicamente correto.
Olavo de Carvalho e as universidades
Por isso, iniciativas como a do embrionário Partido Novo, que se coloca à direita do espectro político, estão fadadas ao fracasso, como alerta, aliás, o próprio Olavo de Carvalho. A hegemonia eleitoral da esquerda não será quebrada enquanto o País não produzir intelectuais conservadores e liberais com capacidade para influir nas instituições. Olavo de Carvalho fez e faz muitos discípulos, mas sua obra continua à margem das instituições de peso. Ninguém sabe de sua existência na escola básica e, no ensino superior, seu nome é temido ou desprezado. Na imprensa, seus artigos entram como um contraponto exótico ao politicamente correto, na cota do “outro lado” — papel que, por sinal, o excelente Luiz Felipe Pondé volta e meia assume de bom grado, o que me parece um grave erro.
Apesar de seu sucesso, o livro “O Mínimo Que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, longe de romper a barreira da academia em relação à obra de Olavo de Carvalho, pode até reforçá-la. O organizador do livro, apesar de resgatar o filósofo por trás de cada artigo do polemista, faz uma interpretação autoral de sua obra, algo que os acadêmicos detestam. Felipe de Moura Brasil trata Olavo de Carvalho com a admiração que os escolásticos devotavam a Aristóteles, o que, para uma universidade intoxicada de Marx e Foucault, é uma heresia, ainda que a obra de Olavo de Carvalho já tenha começado a penetrar timidamente nos cursos de pós-graduação. Mas que aluno terá coragem de citar na sua bibliografia um livro que traz na lombada a palavra “idiota” em caracteres gigantescos? Pode ser mais um pretexto para o professor marxista banir Olavo de Carvalho da cátedra. Só Marilena Chauí xinga a classe média de “desgraça” e continua desfrutando de respeito na academia. Um exemplo da tímida penetração de Olavo de Carvalho na academia é a dissertação de mestrado de Alex Antonio Peña-Alfaro, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pernambuco em 2005, em que o autor utiliza fartamente o livro “Aristóteles em Nova Perspectiva”. Mas o único trabalho acadêmico dedicado exclusivamente a uma obra de Olavo de Carvalho ainda é a dissertação de mestrado de Lucas Patschiki, defendida na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em que o autor analisa o sítio “Mídia Sem Máscara”, criado pelo filósofo, e o enquadra entre os “cães de guarda da classe dominante”.
Como se vê, ainda deve demorar para que a obra de Olavo de Carvalho, sobrepondo-se às paixões ideológicas, fale à razão dos acadêmicos. Nesse dia, o mínimo que se poderá saber sobre Olavo de Carvalho é que ele não é o “profeta” de alguns de seus discípulos nem o “astrólogo” da maioria de seus detratores — é apenas um grande filósofo e um grande escritor. E isso é o máximo que um pensador pode almejar.
Por: José Maria e Silva (Sociólogo e Jornalista).