Duas coisas me encantam: o amor e a intimidade. Sou daquele tipo de pessoa que tem preconceito contra quem não é capaz de se sujar de intimidade.
Sou um homem de obsessões. Uma delas é que não
controlamos a vida. Mas, mesmo assim, devemos tentar ter algum controle sobre
ela. Ao final, sempre somos derrotados. Se pensarmos nisso, nada vale a pena.
Mas, antes da morte, tudo vale a pena justamente porque nunca venceremos a
batalha. Não há qualquer outra dignidade na vida além da do herói épico que
combate 1 milhão de inimigos.
Revi o maravilhoso "Revelações", com Anthony
Hopkins (Coleman Silk) e a bela Nicole Kidman (Faunia Farley). O filme é baseado
no romance de Philip Roth "A Marca Humana".
Este romance guarda um segredo que não deve ser
revelado, sob pena de destruir seu impacto. Ele devia ser lido por todo mundo
acometido da doença do século: a superficialidade de alma. Não se combate essa
doença com alguma teoria sobre a vida (como pensam os superficiais ilustrados),
mas unicamente com o mais puro impasse.
Silk é um "scholar" de literatura que tem sua
vida destruída porque usa a palavra "spook" ("fantasma", mas que tem um segundo
possível significado, "negro", no sentido pejorativo) para dois alunos que nunca
iam à aula.
Apesar de que ele não os conhecia, e, portanto,
não sabia que eram negros, os dois alunos "se ofendem" mortalmente e, por isso,
Silk sofre um processo na universidade por racismo. É humilhado por seus
colegas. Pede demissão. Sua mulher morre do coração de desespero. Ele tem sua
vida arruinada. A universidade, como sempre, quanto se trata de política, é o
pior antro de canalhas da face da Terra.
Intelectuais são os "comissários do povo" mais
temíveis da história. Comissários do povo eram canalhas comunistas que serviam a
ideologia do partido. Intelectual com ideologia deve ser evitado como uma
praga.
Sou um vocacionado à tristeza, mas resisto bem.
As pessoas a minha volta sempre me salvam, mesmo que sem querer. Livros e filmes
como esses me deixam felizes porque vejo neles o que vejo em mim: o sentido da
vida que brota do fracasso, do impasse.
Roth sempre narra como indivíduos são esmagados
por processos históricos. Neste caso, a hipocrisia neopuritana que se alimenta
do antirracismo, fruto imundo da luta pelos direitos civis nos EUA, e que corrói
a universidade como uma "peste do bem". Todos devem provar que não têm
preconceitos (como em outros tempos teriam que provar a fidelidade ao partido ou
a pureza racial) e, por isso, as palavras e os gestos são controlados no
detalhe.
Coleman e Faunia se apaixonam. Ele, um velho
deprimido ("Graças a Deus inventaram o Viagra"), ela, uma jovem pobre
desgraçada, faxineira, com três empregos, que "matou seus filhos" num incêndio,
espancada pelo marido, abusada pelo padrasto, abandonada pelos pais.
Todos são contra. Seus amigos, ex-amigos,
inimigos, advogado. Ele é acusado de abusar de uma mulher jovem e pobre.
Mulheres mais velhas odeiam quando mulheres mais jovens se apaixonam por homens
mais velhos. Ela é acusada de querer dar o golpe da barriga. Ele é culto e
sofisticado, ela fala "to fuck" ao invés de "fazer amor". Vulgar, se veste mal e
limpa a merda dos outros o dia todo, todos os dias.
Mas eles têm aquele tipo de amor que brota dos
restos do gozo e da intimidade suja, do afeto úmido que mora entre as pernas das
mulheres. Um microcosmo no qual o materialismo vence sua pobreza. Uma vitória do
corpo sobre o medo.
O filme é uma profunda prova do fracasso do
sentido das coisas. Tudo na narrativa constrói a destruição do sentido da vida.
O único lugar onde Coleman e Faunia existem é na solidão gloriosa do sexo.
Num dado momento ela chama a atenção dele para
que tudo que existe entre eles é sexo. Ele insiste que não. Ela diz para ele que
ele pensa assim porque não faz sexo há muito tempo.
A intimidade física entre uma mulher e um homem
é de fato uma das maiores experiência da vida. Em meio aos restos dela, no
encontro entre a saliva e o sexo, podemos encontrar alguma alma que valha a
pena.
Por: Luiz Felipe Pondé - Folha de SP - 07-01-2013
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/1210827-intimidade.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/1210827-intimidade.shtml
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