
Na Inglaterra, dizem, existem famílias que nunca trabalharam vivendo graças ao governo há gerações. É, tem gente que ainda não aprendeu que não existe almoço de graça. Mas esse fenômeno de querer desculpar todo mundo da responsabilidade moral do que faz não é invenção de quem hoje justifica a violência em Londres clamando por justiça social na distribuição de iPads. É conhecida a passagem na qual o "homem do subsolo" no livro "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, abre suas confissões dizendo que é um homem amargo. Em seguida, alude à teoria comum de que ele assim o seria por sofrer do fígado. Logo, a culpa por ele ser amargo seria do fígado. Ele recusa tal desculpa para sua personalidade insuportável e prefere assumir que é mesmo um homem mau. Eis um homem de caráter, coisa rara hoje em dia. Agora, todo mundo gosta de "algum fígado" (a sociedade de consumo, o patriarcalismo, a Apple) que justifique suas misérias morais. O profeta russo percebeu que as ciências preparavam uma série de teorias que tirariam a responsabilidade do homem pelos seus atos.
A moda pegou nos jantares inteligentes e hoje temos vários tipos de "teorias do fígado" para justificar nossas misérias morais. Uma delas é a teoria de que somos construídos socialmente. Dito de outra forma: O "sujeito é um constructo social". Logo, quebro loja em Londres porque fui "construído" para enlouquecer se não tenho um iPad. Tadinho...

Por que tanta gente adora essa teoria? Suponho que, antes de tudo, o alivie de ser você e coloque a "culpa" de você ser você no pai, na mãe, na escola, na vizinha, na sociedade, no consumo, na igreja, no patriarcalismo, no machismo, na cama de casal, no iPad, no diabo a quatro. Menos em você. Temos aí uma prova de que grande parte das ciências humanas não reconhece o conceito de caráter. Moral é exatamente você resistir a impulsos que outras pessoas, sem caráter, não resistem. Já leu Aristóteles? Kant? A "culpa" do que hoje acontece em Londres não é do consumo. Homens sempre quebram coisas de vez em quando e querem coisas sem esforço. As causas podem variar. Hoje em dia, seguramente, uma delas é que muita gente está acostumada a um Estado de bem estar social que os trata como bebês. A preguiça, sim, é um traço universal do ser humano.
Luiz Felipe Pondé - Folha de SP - 22/08/11
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