Na foto ao lado está Jorge Bergoglio, no portenhíssimo “subte” (metrô) da linha A em 2008. Meia década antes de ser Francisco.
Direto. Outsider. Este é Jorge Bergoglio, um portenho do bairro de Flores que poucos dias antes de tornar-se o papa Francisco em Roma pegava o metrô em Buenos Aires como qualquer habitante da capital argentina. Ao aparecer na sacada da basílica de São Pedro, em seu primeiro discurso mostrou outra característica – o humor – ao afirmar que os cardeais “haviam ido buscá-lo no fim do mundo”, em alusão aos confins meridionais onde está localizada a Argentina.
Nas horas seguintes ficaram claras outras características do novo santo padre, quando os telespectadores em todo o mundo viram o anel de prata (em vez de ouro) na mão. No peito, uma cruz de prata escurecida pela ferrugem. Nos pés, os sapatos pretos portenhos que levou à Roma com seu clergyman de jesuíta e que agora despontam por baixo dos brancos hábitos de sumo pontífice.
Leitor do autor russo Fiódor Dostoyevski, fã e amigo do escritor argentino Jorge Luis Borges, Bergoglio, é adjetivado de “sóbrio” e “frugal” por seus mais fiéis colaboradores. No entanto, seus inimigos preferem defini-lo como “calculista”, “frio”, “traiçoeiro” e “autoritário”.
Aqueles que o conhecem bem sustentam que só mostra intensa paixão quando fala de Fiodor Dostoyevski, seu escritor preferido. “É um jesuíta até a medula. Ele fala pouco. Ouve o dobro do que fala. E pensa o triplo do que ouve”, disse ao Estado um ex-embaixador argentino em Roma. O diplomata sustenta que jamais desejaria ter Bergoglio como inimigo. Com ironia, explica: “Quem vive, como Bergoglio, só à base de frango cozido e verduras, só pode ser um cara perigoso…”.
Mas, para os argentinos, Bergoglio é o novo ídolo. As pesquisas indicam que mais de 75% dos habitantes do país simpatizam com ele, inclusive os integrantes de outras religiões e os ateus. Sua imagem é vendida em posters, figurinhas e stickers.
Bergoglio é idolatrado pelo clero jovem argentino que aprecia sua proximidade com o povo. Quando morava na cidade, o cardeal mantinha conversas com os portenhos enquanto se deslocava em metrô ou ônibus. Seus admiradores afirmam que o fazia “para estar perto do povo”. Os críticos sustentam que era “puro populismo”.
Os parlamentares da esquerda, que se confrontaram com freqüência com Bergoglio por questões como a legalização do aborto, o definem como “o pior dos inimigos, porque é um inimigo muito inteligente”. No entanto, o cardeal também os desconcerta ao realizar furiosos ataques contra o neoliberalismo.
Fiódor Dostoyevski, escritor russo, é o autor preferido do novo papa.
GESTOS - O sociólogo Alberto Quevedo, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) ressalta que nos últimos meses que Francisco fez uma série de pequenos gestos muito bem calculados, desde pagar a conta do hotel após ser eleito papa; alternar o italiano e o latim em sua primeira missa; e sua decisão de se locomover em um jipe branco em vez do papa-móvel blindado utilizado por seus dois antecessores.
Diversos vaticanólogos afirmaram nos últimos meses que estes gestos de Francisco poderiam debilitar o poder simbólico da Igreja Católica, já que aproximam o papa da população. No entanto, Quevedo argumenta que a estratégia utilizada por Bento 16 de “aproximar-se de Deus e afastar-se do mundo terrenal foi um fracasso. O problema é que o catolicismo disputa o terreno com figuras do cristianismo que tentam estar com o povo na Terra sem tanta solenidade na doutrina”.
QUÍMICO E JESUÍTA – Filho de um imigrante italiano, o ferroviário Mario Bergoglio e de uma neta de imigrantes da Itália, Regina Sívori, Jorge Mario Bergoglio nasceu no dia 17 de dezembro de 1936 em uma área conhecida como “Bonorino”, dentro do bairro de classe média de Flores, em Buenos Aires. Foi batizado no natal daquele ano. Dos quatro irmãos que teve, uma ainda está viva, Maria Elena Bergoglio, que decidiu não viajar ao Brasil ver seu irmão durante a JMJ para não atrapalhar sua atarefada agenda.
Desde criança, foi torcedor fanático do time de San Lorenzo, fundado por um padre no início do século. Mas nunca pôde aspirar a jogar futebol além da praça do bairro. Seu físico, quando adolescente, era franzino. Aos 20 anos, passou por uma operação que implicou na retirada de uma porção de um de seus pulmões.
Sua juventude transcorreu em Flores e nos bairros vizinhos, onde saía com os amigos e apreciava dançar o tango. Ele ainda ouve os tangos de Carlos Gardel, Julio Sosa, Ada Falcón e Azucena Maizani (a quem administrou a extrema-unção em 1970).
Em 1957 formou-se como técnico químico. De forma quase simultânea Bergoglio entrou como noviço para a Companhia de Jesus, ordem caracterizada por sua obediência e disciplina ascética que historiadores preferem definir como militar. Em 1969 foi ordenado sacerdote, aos 33 anos. Aos 36, em 1973 já era o comandante dos jesuítas na Argentina.
Nos anos que se seguiram – o período 1976-83, a ditadura militar argentina –, é um período da vida de Bergoglio com controvérsias. O jornalista investigativo argentino Horacio Verbitsky, do jornal ”Página 12″, sustenta que ele colaborou ativamente com a última ditadura (1976-83), delatando os jovens sacerdotes, que foram seqüestrados pelos militares. No entanto, dois referenciais mais à esquerda de Verbitsky, o frei brasileiro Leonardo Boff e o Nobel da Paz de 1980, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, negam as acusações e sustentam que Bergoglio não delatou sacerdote algum. Na contra-mão, teria ajudado discretamente vários perseguidos políticos a escapar do país.
Nos anos 80 Bergoglio foi estudar na Alemanha. Ao voltar à Argentina teve uma atividade acadêmica e pastoral low profile. No entanto, em 1992, o poderoso cardeal Antonio Quarracino o convocou para ser seu bispo auxiliar em Buenos Aires. “É um jesuíta sereno e preciso. Ele tem uma capacidade e uma velocidade mental fora do comum”, comentou na época.
CARDEAL - Após ter consolidado seu espaço dentro da Argentina Bergoglio deu um salto internacional em 2001, quando ocupou o posto de relator-geral do Sínodo dos Bispos em Roma.
Em dezembro daquele ano Bergoglio viu como milhares de pessoas passavam marchando na frente da catedral para ir na direção da Casa Rosada protestar. Era o final do governo do presidente Fernando De la Rúa e o surgimento da maior crie econômica e social da História da Argentina. Na época – e em 2002 – Bergoglio foi crucial para evitar a fome de dezenas de milhares de pessoas ao criar uma rede de refeitórios populares para alimentar os empobrecidos argentinos.
Embora fosse o cardeal portenho, Bergoglio só começou a ser uma figura conhecida de forma nacional pelos argentinos quando a partir de 2003 manteve uma série de confrontos com o casal Néstor e Cristina Kirchner, que governaram a Argentina ao longo da última década. Sem papas na língua, o cardeal não vacilou em criticar a retomada do crescimento da pobreza, a corrupção, a divisão da sociedade e a falta de tolerância política.
PAPÁVEL - Em 2005 Bergoglio ficou mais conhecido quando passou a ser um dos papáveis da América Latina. Mas, na ocasião Bergoglio ficou em segundo lugar, com 40 votos, sendo superado por Joseph Ratzinger, que foi entronizado Bento XVI.
Bergoglio permanecia cotado como “papável” para um eventual novo conclave. Mas, em 2010 sofreu um duro revés político quando o Parlamento argentino aprovou um projeto de lei do Partido Socialista (mas respaldado pelo governo da peronista Cristina Kirchner) de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Bergoglio, na véspera da votação, deixou de lado seu estilo sóbrio e, perdendo as estribeiras de uma forma ostensiva (o conservador jornal “La Nación” até criticou o ato do cardeal) desferiu um furioso sermão contra o projeto, que foi aprovado com ampla maioria. Muitos integrantes do clero acharam que esta derrota implicaria na perda de pontos como “papável” em um seguinte conclave.
PECULIARIDADES - Ao ser entronizado como o papa Francisco, Bergoglio, além de se transformar no primeiro latino-americano (e habitante de todas as Américas) a ocupar o trono de São Pedro, também quebrou a restrição – implícita – de que um jesuíta seja transformado em papa. Desde que foi criada, há quase cinco séculos, a Companhia de Jesus jamais havia conseguido que um representante seu chegasse a líder da Igreja Católica, principalmente pela oposição de outras congregações que temiam seu crescimento. É também o primeiro papa não-europeu desde Gregório III, nascido na Síria em 690 e santo padre entre 731 e 741.
É também o único papa da História declaradamente fanático do futebol o primeiro que admite dotes de dançarino em sua juventude (gostava de dançar tango), além de ser o primeiro que escreveu um livro em conjunto com um rabino (Abraham Skorka, com quem preparou “Sobre o Céu e a Terra”).