Nascido José
Datrino, o homem que pregou nas ruas de 1961 a 1995, quando morreu, hoje é tema
de artigos em revistas de arte internacionais
RIO - O profeta Gentileza tinha uma maneira
própria de definir o sistema econômico baseado no comércio de produtos com
objetivo de auferir lucros: “capeta-lismo”. Empresário do setor de transporte de
carga em Niterói, José Datrino (1917-1996), nascido em Cafelândia, no interior
paulista, tornou-se Gentileza após uma epifania à véspera do Natal de 1961. Teve
a visão do que acreditou ser o fim dos tempos, vendeu todos os bens e virou
pregador de rua. Costurou um manto branco, pintou nele dizeres sobre bondade e
beleza, deixou a barba crescer e decidiu cruzar o país. Foi chamado de louco e
tomou eletrochoque, porque repetia que “o mundo é uma escola de amor”. No
viaduto do Caju, Zona Portuária do Rio, resistem, em verde, amarelo e azul,
pintados sobre o concreto cinza, 56 aforismos, entre eles o de número 44, que
diz: “Não pense em dinheiro. Ele é o capeta. Cega a Humanidade e leva para o
abismo”.
O capitalismo, como o demônio, também se
imiscui nas menores coisas. Peças produzidas a partir de frases e da criação
gráfica do profeta Gentileza se multiplicam cada vez mais no comércio e são até
exportadas. Geram mais riqueza do que gentileza, porque não pagam nenhum centavo
à família daquele que criou uma sentença quase onipresente. Pode-se ver a
inscrição “Gentileza gera gentileza” em sandálias, tênis, camisetas, cangas,
guarda-sóis, canetas, bolsas, bonés, “mousepads”, ímãs e adesivos, entre dezenas
de produtos. São vendidos ou customizados por empresas de pequeno porte ou
artistas alternativos, como se a obra fosse de domínio público. Sem pagamento de
direito de autor ou de marca. Estão tanto em lojas do Leblon e de Ipanema, na
Zona Sul, como em bancas do camelódromo da Rua Uruguaiana ou na estação do metrô
da Cinelândia, no Centro. A família nunca entrou na justiça.
Os produtos, os produtores e os preços são
tantos e em tal volume que se torna impossível dimensionar o tamanho do mercado.
Uma sandália com a inscrição “Gentileza gera gentileza” pode custar R$ 40. Uma
loja de Ipanema, daquelas que vendem a moda de rua requintada, comercializava
por R$ 100 um tênis All Star com a expressão do profeta customizada, ou seja,
aplicada por meio de tela na lona do original de fábrica. Uma saída de praia ou
camiseta pode ser comprada na Rua Uruguaiana por R$ 15, uma bolsa por R$ 10, um
adesivo por R$ 6 e um ímã de geladeira por R$ 5. No shopping Leblon, uma caneta
sai por R$ 5.
— Outro dia um rapaz chegou no nosso bar e
disse que queria cerveja com desconto. Eu disse que não podia dar desconto,
porque o preço da cerveja já é o mais barato da região. Ele insitiu, mostrou a
cueca e lá estava escrito: “Gentileza gera gentileza” — conta Maria Alice
Datrino, 68 anos, a mais velha dos cinco filhos de Gentileza, que mora e
administra um bar em Guadalupe. Os herdeiros legais do profeta já passam de
três dezenas.
— Outro dia vi uma camiseta e disse para a dona
da loja que era criação do meu pai. Ela respondeu que eu não devia me preocupar,
já que era uma fábrica de fundo de quintal — diz Maria Alice.
Biógrafo, autor do livro “Univvverrsso
Gentileza” (Mundo das Ideias, 2009) e professor do Departamento de Artes da UFF,
Leonardo Guelman aponta como um “contrassenso” a assimilação das obras de
Gentileza pelo comércio: — Não foi à toa que ele falava do
capeta-capital. Porque a gentileza à qual o profeta se refere não se opõe à
violência. É claro nos escritos dele que a violência é um fenômeno superficial
da exclusão. Ele acreditava que o dinheiro fazia com que as pessoas perdessem a
fraternidade. Gentileza, na obra dele, opõe-se à ganância.
A filha mais velha afirma que, por diversas
vezes, a família pensou em entrar na Justiça para pedir compensação econômica em
defesa do direito autoral da obra do pai:
— Mas ele sempre dizia que o dinheiro era um
mal. Nunca recebemos um tostão de ninguém. Só em 2009, quando foi ao ar a novela
“Caminho das Índias”, cada um dos cinco filhos recebeu R$ 3.850, porque havia o
personagem do Paulo José, que foi inspirado em meu pai.
A família Datrino está protegida em tudo o que
for relacionado ao direito de autor, no entender de Vinicius Bogéa Câmara,
diretor de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI): Pela Convenção de Berna, o direito do autor
independe de qualquer tipo de registro.
Assim, a obra de Gentileza, apesar de ser em
locais públicos, sem ter sido registrada, tem autor reconhecido. Qualquer uso de
sua produção pode ter exigida a citação do autor e o pagamento de direitos
autorais. Os Datrino nunca foram à Justiça tentar alguma indenização, nem exigir
que Gentileza seja identificado como o autor da frase que se prolifera por
aí.
Questão diferente é a tentativa da
transformação das letras e da frase de Gentileza em uma marca registrada,
definida nas leis que regem a propriedade industrial. Um dos netos do profeta,
Vagner Datrino, entrou com um pedido de registro no INPI de marca registrada de
produto para exploração no setor de comércio de roupas e publicidade. Se
obtivesse o registro da marca, ninguém poderia usá-la sem sua licença ou sem o
pagamento dos devidos royalties nesses setores. O processo foi arquivado porque
não tinha a participação de todos os herdeiros legais de Gentileza. No caso da marca, quem registrá-la primeiro
para um fim específico tem o direito de usá-la — esclarece o diretor de marcas
do INPI, Vinicius Bogéa Câmara.
A designer e consultora editorial Eliane
Stephan diz que a obra de Gentileza tem de ser entendida como um conjunto: O trabalho de lettering (desenho da letra) é
interessante enquanto composição, sempre usando faixas horizontais nas cores
verde e amarela, para separar cada linha dos seus textos, além de alguns
símbolos criados para separar ou pontuar palavras. São uma espécie de tábua de
mandamentos. Não podem ter seu entendimento reduzido à criação de letras
somente, desvinculado da mensagem.
Fonte: Site O globo de 14-10-2012.
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