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O objetivo deste blog é discutir idéias, expor pontos de vista. Perguntar mais do que responder, expressar mais do que reprimir, juntar mais do que espalhar. Se não conseguir contribuir, pelo menos provocar.

domingo, 21 de outubro de 2012

PROFETA GENTILEZA

Nascido José Datrino, o homem que pregou nas ruas de 1961 a 1995, quando morreu, hoje é tema de artigos em revistas de arte internacionais
 
RIO - O profeta Gentileza tinha uma maneira própria de definir o sistema econômico baseado no comércio de produtos com objetivo de auferir lucros: “capeta-lismo”. Empresário do setor de transporte de carga em Niterói, José Datrino (1917-1996), nascido em Cafelândia, no interior paulista, tornou-se Gentileza após uma epifania à véspera do Natal de 1961. Teve a visão do que acreditou ser o fim dos tempos, vendeu todos os bens e virou pregador de rua. Costurou um manto branco, pintou nele dizeres sobre bondade e beleza, deixou a barba crescer e decidiu cruzar o país. Foi chamado de louco e tomou eletrochoque, porque repetia que “o mundo é uma escola de amor”. No viaduto do Caju, Zona Portuária do Rio, resistem, em verde, amarelo e azul, pintados sobre o concreto cinza, 56 aforismos, entre eles o de número 44, que diz: “Não pense em dinheiro. Ele é o capeta. Cega a Humanidade e leva para o abismo”.
 
O capitalismo, como o demônio, também se imiscui nas menores coisas. Peças produzidas a partir de frases e da criação gráfica do profeta Gentileza se multiplicam cada vez mais no comércio e são até exportadas. Geram mais riqueza do que gentileza, porque não pagam nenhum centavo à família daquele que criou uma sentença quase onipresente. Pode-se ver a inscrição “Gentileza gera gentileza” em sandálias, tênis, camisetas, cangas, guarda-sóis, canetas, bolsas, bonés, “mousepads”, ímãs e adesivos, entre dezenas de produtos. São vendidos ou customizados por empresas de pequeno porte ou artistas alternativos, como se a obra fosse de domínio público. Sem pagamento de direito de autor ou de marca. Estão tanto em lojas do Leblon e de Ipanema, na Zona Sul, como em bancas do camelódromo da Rua Uruguaiana ou na estação do metrô da Cinelândia, no Centro. A família nunca entrou na justiça.
 
Os produtos, os produtores e os preços são tantos e em tal volume que se torna impossível dimensionar o tamanho do mercado. Uma sandália com a inscrição “Gentileza gera gentileza” pode custar R$ 40. Uma loja de Ipanema, daquelas que vendem a moda de rua requintada, comercializava por R$ 100 um tênis All Star com a expressão do profeta customizada, ou seja, aplicada por meio de tela na lona do original de fábrica. Uma saída de praia ou camiseta pode ser comprada na Rua Uruguaiana por R$ 15, uma bolsa por R$ 10, um adesivo por R$ 6 e um ímã de geladeira por R$ 5. No shopping Leblon, uma caneta sai por R$ 5.
 
— Outro dia um rapaz chegou no nosso bar e disse que queria cerveja com desconto. Eu disse que não podia dar desconto, porque o preço da cerveja já é o mais barato da região. Ele insitiu, mostrou a cueca e lá estava escrito: “Gentileza gera gentileza” — conta Maria Alice Datrino, 68 anos, a mais velha dos cinco filhos de Gentileza, que mora e administra um bar em Guadalupe. Os herdeiros legais do profeta já passam de três dezenas.
 
— Outro dia vi uma camiseta e disse para a dona da loja que era criação do meu pai. Ela respondeu que eu não devia me preocupar, já que era uma fábrica de fundo de quintal — diz Maria Alice.
 
Biógrafo, autor do livro “Univvverrsso Gentileza” (Mundo das Ideias, 2009) e professor do Departamento de Artes da UFF, Leonardo Guelman aponta como um “contrassenso” a assimilação das obras de Gentileza pelo comércio: — Não foi à toa que ele falava do capeta-capital. Porque a gentileza à qual o profeta se refere não se opõe à violência. É claro nos escritos dele que a violência é um fenômeno superficial da exclusão. Ele acreditava que o dinheiro fazia com que as pessoas perdessem a fraternidade. Gentileza, na obra dele, opõe-se à ganância.
 
A filha mais velha afirma que, por diversas vezes, a família pensou em entrar na Justiça para pedir compensação econômica em defesa do direito autoral da obra do pai:
 
 
— Mas ele sempre dizia que o dinheiro era um mal. Nunca recebemos um tostão de ninguém. Só em 2009, quando foi ao ar a novela “Caminho das Índias”, cada um dos cinco filhos recebeu R$ 3.850, porque havia o personagem do Paulo José, que foi inspirado em meu pai.
 
A família Datrino está protegida em tudo o que for relacionado ao direito de autor, no entender de Vinicius Bogéa Câmara, diretor de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI): Pela Convenção de Berna, o direito do autor independe de qualquer tipo de registro.
 
Assim, a obra de Gentileza, apesar de ser em locais públicos, sem ter sido registrada, tem autor reconhecido. Qualquer uso de sua produção pode ter exigida a citação do autor e o pagamento de direitos autorais. Os Datrino nunca foram à Justiça tentar alguma indenização, nem exigir que Gentileza seja identificado como o autor da frase que se prolifera por aí.
 
Questão diferente é a tentativa da transformação das letras e da frase de Gentileza em uma marca registrada, definida nas leis que regem a propriedade industrial. Um dos netos do profeta, Vagner Datrino, entrou com um pedido de registro no INPI de marca registrada de produto para exploração no setor de comércio de roupas e publicidade. Se obtivesse o registro da marca, ninguém poderia usá-la sem sua licença ou sem o pagamento dos devidos royalties nesses setores. O processo foi arquivado porque não tinha a participação de todos os herdeiros legais de Gentileza. No caso da marca, quem registrá-la primeiro para um fim específico tem o direito de usá-la — esclarece o diretor de marcas do INPI, Vinicius Bogéa Câmara.
 
A designer e consultora editorial Eliane Stephan diz que a obra de Gentileza tem de ser entendida como um conjunto: O trabalho de lettering (desenho da letra) é interessante enquanto composição, sempre usando faixas horizontais nas cores verde e amarela, para separar cada linha dos seus textos, além de alguns símbolos criados para separar ou pontuar palavras. São uma espécie de tábua de mandamentos. Não podem ter seu entendimento reduzido à criação de letras somente, desvinculado da mensagem.
 
 
Fonte: Site O globo de 14-10-2012.

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