Tive uma vivencia única de conversar dia
destes com um enfermeiro geriátrico que me contou algumas historias sobre seus
pacientes na casa de idosos da cidade. Imagine, foram uns 45 minutos que fiquei aguardando meu vôo naquele
barulhento saguão de aeroporto, mas parecia que estávamos numa igreja vazia na
segunda pela manhã e que conversamos por só três minutos. Emocionante! De algumas
até tristes, uma historia me chamou muito a atenção: A de uma
"noninha" que dos altos de seus 80 anos tinha a lucidez de uma
adolescente de 16 e a eloquência de uma professora em sala de aula. Contava a
noninha sempre entusiasmada de suas lembranças românticas, a maioria delas com
seu amado esposo falecido, outras não. Dava detalhes de roupas perfumes,
lugares e penumbras que não era comum ouvir de uma senhora octogenária, mas
sempre com elegância e discrição ela relatava com emoção os seus feitos
enquanto ainda a juventude lhe favorecia.
Contou-me aquele jovem de no máximo
uns 35 anos, postura responsável e educação incomum, que em certa feita, ela
ainda relatou o seu primeiro dia na escola. Contou-lhe de detalhes da longa estrada que precisava caminha pelo interior onde morava até chegar na cidade; A pequena sala de aula onde os alunos de todos os anos estudavam; A única "muda" de roupa que tinha, sempre limpa, mas única; Os tamancos de madeira e couro que atravessavam os anos. Seus pés
cresciam, mas tinha que continuar cabendo dentro dos tamancos. A noninha também
era uma das grandes animadoras das festas da comunidade onde conheceu seu
primeiro namorado, que depois veio a ser marido, pai dos seus filhos e avo dos
seus netos. Este atencioso rapaz a ouvia relatar tudo com calma e singelo
afeto. Disse-me que passava horas em atenção a ela, porém estranhava muito o
fato dela dizer que se lembrava de poucas coisas quando recebia a visita de
seus parentes, principalmente seus irmãos e filhos. Um dia o jovem enfermeiro
tomou coragem e questionou a noninha: Porque você não conta para os seus
parentes estas historias 'nona'? O semblante da simpática velhinha ficou
'sério' e desviou-lhe o olhar, relatou o enfermeiro. Com um tom seco ela respondeu:
"Eles me corrigem demais". Foi então que ele começou a desconfiar que
provavelmente as histórias poderiam estar sendo criadas pela noninha. Na primeira oportunidade que
teve, conversou com um de seus irmãos mais novos que vinha sempre acompanhado com sua filha e um netinho dela. A desconfiança se desfez. Realmente, para família ela tinha
mistos de alucinações. Porém para ele, nunca nos seus quase dois anos naquele
lugar, a percebeu assim. Ela estava muito longe de parecer uma mulher alucinada
ou louca. Na verdade, segundo o jovem, a família parecia ser o peso que a
trazia de volta para uma realidade que ela não queria mais viver. Ficava incomodada com as visitas da família. Queria sim
viver no misto de memórias e fantasias de sua lembrança, como se agora ela
pudesse, amparada pelo efeito dos 80 anos em sua vida, viver sonho e realidade
num só tempo: O tempo de sua mente, livre das correções e dos desencontros da
historia. Tudo fazia sentido e todo final era feliz nas historias da
noninha. O vôo do enfermeiro saiu 20 minutos antes do meu, mas fiquei eu como que voando, ainda 'vivendo' a historia daquela senhora e refleti: Como estas situações podem ocorrer?!
A filosofia clinica explica este comportamento a partir de um
submodo chamado idéias complexas, onde o individuo tem um potencial imaginário
para criar um determinado mundo para si. Pode ele sentir-se mais
realizado, protegido, mais importante talvez, nem sempre, mas provavelmente mais feliz
naquele ambiente e historia, do que na realidade comum. Eis algumas questões
que penso ser inevitáveis: Onde está o imaginário e a realidade nesta historia?
Qual mundo faz mais sentido para a noninha? Com quem estava sendo ela mesma e com
quem estava representando? Ela mentia? Caso existisse mentira, para quem ela
mentia ou para quem escondia a verdade? Para o seu
enfermeiro cuidador ou para a família? Não pretendo responder nenhuma pergunta.
Gostaria sim de fazer duas provocações: Quanto da noninha temos 'ainda'
dentro de nós? Ou estamos esperando nosso 'cuidador', um enfermeiro geriátrico que
aos 80 anos vai nos ouvir para então vivermos o mundo ideal que desejamos? Acho que
para muitas pessoas será assim, outras nem terão memorias para produzir. Ao
levantar-se para tomar a fila de embarque, aquele jovem enfermeiro me deixou
suspenso em uma frase que jogou ao ar. Enquanto ajeitava sua pequena mochila de
couro nas costas olhando para o painel indicativo que chamava o vôo, me
provocou: "Apesar de ser um sonho de pessoa, a noninha é mais real do que
podemos imaginar." Essa senhora é familiar pra você?
Força, coragem e virtude!
Por André Topanotti - 15/06/2012 - Criciúma/SC
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